O paradoxo da aceitação

Uma das novidades na minha vida em 2023 foi a terapia. Nunca tinha feito. Nunca achei que precisasse. Sempre procurei resolver minhas questões internamente e, quando necessário, contava com o círculo familiar e com amigos mais próximos. Nunca tive dificuldade em aceitar a realidade do jeito que ela é, por mais incômoda que seja. Minha inclinação para a charge política pode ter algo a ver com isso.

Porém o meu ano de 2022 foi tão brutal que, pela primeira vez na vida, senti que precisava de ajuda profissional. Foram muitas questões complexas, atacando por todos os lados, tudo ao mesmo tempo. Por mais bem resolvida que a pessoa seja, quando a tempestade perfeita chega, fica demais para aguentar tudo sozinho.

Foram várias as razões que detonaram a crise, mas aqui vou me ater a apenas uma, de caráter mais geral e que está afetando bastante gente hoje. É uma questão que já vinha se anunciando desde a pandemia, quando o lockdown e a vacina da covid-19 entraram na pauta. Claro, já era de se imaginar que haveria discordâncias. A surpresa foi a forma como essas discordâncias se apresentaram.

O tom dos que se posicionaram contra o lockdown e rechaçavam a vacina estava muito acima dos padrões mínimos de civilidade. Isso era novo. Para piorar ainda mais, o governo e o presidente daquela época fizeram todo o possível para elevar a irracionalidade e a agressividade a níveis nunca antes vistos.

Naqueles dias, a tempestade perfeita ainda não tinha chegado, mas já havia no ar um vírus tão ou mais perigoso do que o da covid: o da barbárie.

Jair Bolsonaro foi o presidente mais sinistro e desumano que tivemos na era moderna. Ele derrubou todos os freios sociais que ainda restavam em nossa sociedade, e deu coragem (em alguns casos deu até armas) a quem se sentia preso por estes freios. Àqueles que já tinham o vírus da barbárie incubado dentro de si, Bolsonaro mostrou o caminho e se tornou uma inspiração. Um anjo libertador. Um “mito”.

Mas não foram apenas os enfermos que contribuíram com o estrago. Os cínicos também entraram em campo, silenciando, negando ou minimizando o problema. Algumas vezes até endossando barbaridades dos novos bárbaros, sempre sob a justificativa do “é só brincadeira”. E assim a barbárie foi se tornando o nosso “novo normal”.

Tudo bem. Se essa era a nova realidade, eu tinha o meu próprio jeito de lidar com ela: fazendo charges. Depois de três anos sem desenhar, voltei aos trabalhos e criei a série RockToons, em que me diverti fazendo releituras de capas de discos de rock, conectando as letras das músicas com as agruras daqueles dias. Era o prelúdio para algo maior, e esse algo se tornou o livro DISTOP!A, que fechou a Trilogia de Charges.

Como era de se esperar, o período eleitoral de 2022 passou como um tufão. Varreu lares, destruiu famílias e abriu feridas que até hoje não cicatrizaram. Algo que sempre me intrigou é até aonde as pessoas são capazes de ir para defender uma ideologia, um político ou um partido. Millôr tinha uma frase ótima para definir os radicais da política: “xiita é uma pessoa capaz de matar ou morrer por uma ideia que não tem”.

E, no caso dos bolsonaristas, não tinha mesmo. Era só uma destilação diária de ódios, preconceitos e desejos de ver um golpe de estado no Brasil. Curioso era o sinal trocado: no discurso deles, eram eles que estavam defendendo a democracia e a liberdade.

A eleição passou e estes desejos não se concretizaram, mas isso não os tirou do metaverso. Ao contrário. No dia 8 de janeiro de 2023 eles levaram o metaverso para a Praça dos Três Poderes. Aquele era o Brasil que idealizavam.

A tentativa de golpe falhou e o resultado das urnas prevaleceu. Para a maioria dos brasileiros, a vida seguiu. Mas muitos voltaram correndo para o metaverso, onde a “realidade” diz que as eleições foram fraudadas; que Bolsonaro foi um grande presidente, injustiçado e perseguido; e que Lula está transformando o Brasil num país comunista (a definição deles para comunismo é um tanto tortuosa – aos que tiverem curiosidade mórbida, consultem a cartilha de Olavo de Carvalho).

No meu caso ainda tinha um agravante: no “novo normal” do Brasil polarizado, um chargista não é visto com bons olhos, pois questionar as “narrativas” das bolhas passou a ser uma afronta ao bem estar e ao conforto das pessoas (e isso vale para os dois “lados”). Quando notei que essa minha natureza questionadora não era mais tão bem aceita e não se esquadrava nos moldes atuais, eu tinha uma escolha a fazer: ou reivindicava o meu eu; ou me autoanulava.

Como jamais me passou pela cabeça me enquadrar em visões de mundo determinadas por outras pessoas, segui em frente e encarei as consequências. Agora, cá estou, fazendo terapia e buscando a melhor forma de encarar esse “novo normal”. Aprendi que um passo necessário para enfrentar isso é o da aceitação. Porém, hoje, essa aceitação passa por aceitar a não-aceitação da turma do metaverso…

E assim chegamos ao paradoxo. Já sugeri ao meu terapeuta que converse com seus pares e investigue melhor a questão. Precisamos de alguma literatura sobre o assunto.

A situação é similar e se interconecta com o “Paradoxo da Tolerância”, do filósofo austríaco Karl Popper (1902-1994). O paradoxo, neste caso, acontece quando uma sociedade passa a tolerar discursos de ódio, ideologias extremadas etc. Segundo ele, a tolerância a esse tipo de discurso torna a sociedade vulnerável a ataques intolerantes, sob o disfarce da liberdade de expressão.

“A tolerância ilimitada leva ao desaparecimento da tolerância. Se estendermos a tolerância ilimitada mesmo aos intolerantes, e se não estivermos preparados para defender a sociedade tolerante do assalto da intolerância, então, os tolerantes serão destruídos e a tolerância com eles.”

Popper, Karl – “A Sociedade Aberta e Seus Inimigos – Vol. 1” (1945)

Por esta razão, Popper defende em sua tese que uma sociedade que se pretende tolerante não pode tolerar a intolerância. Ok, mas aí caímos em outra armadilha: o que caracteriza um discurso intolerante? Quem define isso? Qual é o limite? As respostas e interpretações variam.

Na questão da aceitação, o dilema é outro. Somos nós que devemos aceitar a não-aceitação dos fatos pela turma do metaverso? Ou devemos impor a eles a aceitação dos fatos e tirá-los à força de seus “grupos de apoio”, onde eles recebem doses diárias de dopamina e serotonina e se sentem vivos e inebriados pela crença coletiva?

No Brasil em que nasci e cresci, discordar politicamente e ironizar fatos políticos com piadas e charges jamais foi problema. No “novo” Brasil, onde os fatos viraram “narrativas” fabricadas em bolhas políticas, o humor, a crítica e a ironia passaram a ser “cancelados”. Tenho tido sérias dificuldades em aceitar essa “Nova Ordem” em que todo mundo precisa virar “ativista” e fazer militância. Isso me levou a uma inédita crise de identidade e também a uma espécie de exílio autoimposto.

Enquanto este estudo sobre o paradoxo da aceitação não chega, por ora, só existe uma solução para o problema no curto e médio prazo: não falar de política em certos círculos.