Livros de charges podem ser didáticos? A saga da Trilogia numa escola pública da Bahia

Estudantes do Ensino Médio da Escola Maria Otília Lutz, em Luís Eduardo Magalhães (BA)

O fenômeno não é exatamente novo. Já tinha sido ensaiado lá em 2015, 2016, na esteira do lançamento do Trágico e Cômico, e voltou a acontecer, mas agora com muito mais impacto e consistência. A exemplo de seu antecessor, DISTOP!A caiu no gosto das turmas do Ensino Médio. A novidade é que, dessa vez, trouxe a Trilogia toda a reboque, puxando o fio narrativo desde 2002 e incluindo todo o espectro político na discussão.

Como isso foi acontecer? Bom, a explicação mais imediata corrobora a análise feita lá atrás: sim, os jovens se comunicam, se informam e curtem tudo online. Porém, na hora de formar opinião, é preciso buscar algo mais aprofundado e confiável. E, convenhamos, nestas horas, as redes sociais mais confundem do que explicam.

Os algoritmos – sempre eles – direcionam os cliques para conteúdos mais “barulhentos” e radicalizados. Quem já percebeu o jogo das big techs concluiu que não se trata apenas de nós sermos o “produto” dentro dessas plataformas, mas também de permanecer presos dentro das bolhas politicas que ali se formaram.

Não tenho como esconder o fato: as vendas de DISTOP!A ficaram abaixo do esperado, mesmo com expectativas já bastante modestas. O livro teve fôlego no período eleitoral, mas depois do resultado nas urnas, foi vitimado pela ressaca política que se abateu sobre o país.

Havia um pouco de ingenuidade da minha parte também, afinal, diante dessa realidade esmagadora das redes sociais, defender que todos os governos precisam ser criticados passou a ser um ideal profundamente desconectado do zeitgeist (espírito do tempo).

Desde que o novo governo assumiu, meu desânimo pela falta de interesse do público foi interrompido – ainda que de forma episódica – por acontecimentos um tanto curiosos e aparentemente aleatórios.

Assim chegamos a Luís Eduardo Magalhães, cidade de 92 mil habitantes situada no extremo Oeste baiano. Vanuza Batista Vieira, professora de Ensino Médio da Escola Maria Otília Lutz, acreditava que era possível proporcionar aos seus alunos uma forma de interação mais leve, reflexiva e dialógica, através da charge política.

Vanuza partiu da mesma premissa que parto sempre. Compreendeu que, para um debate realmente acontecer, é preciso manter-se aberto ao contraditório e não deixar o senso crítico ser capturado pelas torcidas organizadas.

Ao contrário do que muita gente pensa, rejeitar a polarização não significa abrir mão de votar em qualquer político/governo, ou de ter opinião sobre eles. Significa apenas entender que tanto a adesão apaixonada e acrítica quanto o ódio cego – seja para qual lado for – não é o melhor caminho para se produzir ideias próprias.

corruPTos (2006), Trágico e Cômico (2014) e DISTOP!A (2022) atraíram a curiosidade dos jovens

Atenta a questões que sensibilizam os jovens, como algoritmos, radicalização política e a temida cultura do cancelamento, Vanuza enxergou que seus alunos estariam abertos a debates mais complexos, e resolveu fazer um experimento. Em classe, ofereceu a leitura dos três livros da Trilogia (foto acima) e deixou a antena ligada para as reações e a repercussão geral.

Os debates vieram naturalmente e foram se multiplicando, sem que uma única briga ou discussão mais forte fosse registrada. Os alunos entenderam que discordar não significa tornar o outro um inimigo. Enxergaram que o contraditório não deve servir à polarização, mas sim, a diálogos que, se bem travados, podem produzir boas ideias.

Foi lá por volta de maio que comecei a receber os primeiros sinais de que havia este novo público lendo, curtindo e marcando a @trilogiadecharges em seus posts nas redes sociais. Imediatamente entrei em contato com a Vanuza e mandei mais duas Trilogias para que ela seguisse com essas dinâmicas, e também propus uma live com a turma, onde eu contaria sobre a construção deste trabalho e os bastidores da produção do DISTOP!A.

Encenação em classe de um debate eleitoral: uma das atividades inspiradas pela Trilogia

Nesse interim, ela ainda teve tempo de promover outra atividade ligada à Trilogia: a encenação de um debate eleitoral, em que os alunos imitaram os políticos mais conhecidos do cenário nacional. Vi alguns vídeos e fiquei até emocionado. Com leveza e humor, a turma estava se divertindo às custas dos poderosos. Para um chargista, isso é ouro.

Finalmente o dia da live chegou. Na manhã de 7 de julho, lá estava eu, no telão do auditório da escola, falando para 80 pessoas. Procurei caprichar na apresentação, trazendo algumas referências literárias, gráficas e culturais, além de contar um pouco sobre o processo criativo. Após a apresentação, respondi às perguntas dos alunos.

Eram questões de quem realmente leu os livros e está refletindo sobre o momento político do país. Um dos alunos chegou a afirmar que teve dificuldade em confrontar suas crenças em alguns pontos da Trilogia, mas que entendeu a necessidade destes questionamentos.

Olhando em retrospecto, essa saga toda foi pura contracultura. Mais do que isso: foi uma afronta ao zeitgeist. Desde o dia em que os livros foram apresentados aos alunos até o final dessa live, a polarização política entrou em estado de decomposição. Entre tantas opiniões diferentes, houve um único consenso: na visão deles, a Trilogia era “didática”.

No Brasil de 2023, utilizar livros de charges como livros didáticos é algo surreal. Por isso é difícil dimensionar o feito da professora Vanuza. Sua inquietação, ousadia e habilidade conseguiram abrir uma nova perspectiva de diálogo e reflexão com os estudantes – e isso em um ambiente político nada favorável.

Falando como autor, é algo que jamais imaginei possível, pois nem era essa a minha intenção quando produzi os livros. E nestes últimos meses, em meio a tantos questionamentos, a pergunta “será que não foi tudo em vão?” ganhou feições cada vez mais retóricas. Porém, episódios como estes – primeiro do Roda Viva e agora isto – fazem com que tudo tenha valido a pena, e servem para lembrar que o tempo desses acontecimentos não é o nosso tempo.

Minha sensação é de que, sempre que lanço um livro, ele deixa de me pertencer e viro apenas o seu mensageiro. Afinal, se ele foi “lançado”, o público deve decidir o que fazer com ele, podendo abraçá-lo ou ignorá-lo.

Portanto, não é exagero dizer que, nas mãos da Vanuza e da turma, a Trilogia ganhou uma nova chance. Agora, é segurar a curiosidade para saber como essa saga vai continuar.

* as fotos deste post são registros da professora Vanuza