Quando contribuiu com a campanha de crowdfunding da Trilogia de Charges em 2022, Vanuza Batista Vieira não ficou apenas na leitura dos livros. Professora de Ensino Médio da Escola Maria Otília Lutz, em Luis Eduardo Magalhães (BA), ela enxergou além e resolveu dar um novo sentido aos três livros, utilizando-os como material de pesquisa para jovens do Ensino Médio. Entendeu também que não se trata de falar de um ou dois governos, mas de compreender o ciclo político pelo qual o Brasil passou neste século XXI. Como está dito na introdução de DISTOP!A, a Trilogia vai da esquerda à extrema direita, abrangendo vinte anos de vida política (2002-2022), portanto, oferecia todas as condições para essa análise mais abrangente.
Começando com debates em classe com os estudantes, passando pela encenação de um debate eleitoral e chegando na live realizada com a turma, agora é hora de refletir um pouco sobre o processo todo, pois ele seguiu na direção oposta ao que se estabeleceu no debate político atual. Portanto, nessa continuidade, iremos seguir nadando contra a corrente. Em vez de entrevistar um “especialista” – aquele que, segundo Millôr Fernandes, é o que só não ignora uma coisa – preferi conversar com quem está em contato diário com os jovens e entende melhor como eles pensam. Nas linhas a seguir, a professora Vanuza conta um pouco como foi o processo de usar livros de charges em atividades interdisciplinares e de como ela vê o processo pedagógico num país polarizado politicamente.
Vanuza, gostaria de começar com a pergunta mais imediata: quando foi que você percebeu o potencial pedagógico da Trilogia?
Desde que recebi a Trilogia, no final do ano passado. Para trabalhar o gênero textual – charge – ou para abordar alguma temática abordada na obra. O Trágico e Cômico é, por assim dizer, mais didático, por ser mais explicativo. Foi excelente para entender como se construiu a polarização que vivenciamos. Mas foi o DISTOP!A que mais se encaixou nas temáticas que estava abordando em sala – as redes sociais no cenário político, fake news, algoritmos, polarização, cultura do cancelamento, entre outros. A Trilogia nos trouxe, de forma lúdica, todos esses temas. Mas o principal fator que a torna pedagógica se dá pelo fato dela trazer reflexões e curiosidades para meus alunos. Muitos, inclusive, foram pesquisar personagens que desconheciam, ou fatos que não estavam nas temáticas trabalhadas.
Sei da importância de apresentar uma diversidade de gêneros textuais. Tão importante quanto capacitar o aluno a se tornar um leitor proficiente, é prepará-lo para ler textos atuais que estejam em consonância com os acontecimentos. As charges relacionam-se diretamente a fatos acontecidos em um determinado momento e, muito mais do que um mero material ilustrativo, emite uma opinião crítica sobre um acontecimento fazendo uso de imagem e de elementos linguísticos e humorísticos. Então, o potencial pedagógico da Trilogia é enorme. Principalmente pela capacidade de instigar e provocar os alunos.
Muitos professores costumam fazer um momento de preparação/sensibilização com os alunos antes de introduzir um novo tema ou nova atividade. Você chegou a fazer isso antes de apresentar os livros da Trilogia?
Sim, sempre planejo minhas aulas a partir de interesses dos alunos. Sempre procuro trazer temas e objetos de conhecimento do interesse deles. Planejei uma redação com o tema “A cultura do cancelamento”. Primeiro trouxe para a sala de aula a música “A queda”, da Gloria Groove. Fizemos a análise da letra e do vídeoclipe que trazia elementos do circo (circo dos horrores). A letra traz uma reflexão sobre a atitudes dos haters na web. Isso já “causou”, pelo estilo musical e pela artista. Depois entrei com a Trilogia para falar sobre isso dentro da política. Durante a exibição do clipe e da análise da letra, os livros da Trilogia estavam em cima da minha mesa, junto a outros. Foram “deixados ali”. Mostrei o capítulo II do DISTOP!A, “As redes sociais”, e o resto fluiu.
Vários questionamentos foram surgindo, outros temas foram aparecendo e o debate foi acontecendo de forma democrática, que era o objetivo. É bom dizer que sempre ando com livros, pois acho que o incentivo à leitura vem, primeiramente, pelo exemplo. A Trilogia está sempre na minha bolsa e entrou no meu planejamento faz um tempinho. Sempre tem algo para mostrar aos alunos. Dá para mostrar como se dá a intertextualidade nas charges e esse é o melhor jeito de explicar o assunto.
O fato de os estudantes terem classificado os livros da Trilogia como “didáticos” surpreendeu também pelo fato de eles terem recorrido a livros impressos para refletir sobre a política. Na sua visão, por que eles saíram das plataformas digitais e recorreram ao “analógico” para formar opinião?
Sair das plataformas digitais para o “analógico” era um dos objetivos da aula. A charge ajuda a subsidiar a competência argumentativa dos estudantes a partir de relações lógico-discursivas e críticas sociais trazidas à tona. Pelo fato de provocar o humor, promove uma atividade prazerosa para alunos e professores. Levei os livros, primeiramente para despertar a curiosidade, e o interesse dos alunos veio de forma natural. Incrível ver os livros passando de mão em mão, uns chamando a atenção de outros para uma charge em particular. Tudo de forma espontânea. E a partir daí não pararam mais, não ficaram presos apenas nas temáticas sugeridas por mim. Partiram para outras ideias e outras formas de usar os livros para seus interesses.
Tem uma charge no DISTOP!A que mostra como “a era das redes sociais é também a era do falso moralismo engajado” (imagem acima). Foi a deixa para que, a partir dessa reflexão, usássemos os livros, o analógico. Meus alunos amaram a experiência, tocar, sentir a textura, os traços dos desenhos. Foi uma grata surpresa ver o fascínio deles. Era uma novidade para eles e aposto que essa experiência ficará para sempre. Ainda mais depois do bate papo que eles tiveram com o autor da Trilogia. Isso ultrapassou o fazer didático.
Sobre o fato de os alunos terem classificado a obra como didática, deixo o relato por escrito de um aluno, Luís Felipe:
“Os livros da Trilogia nos foram apresentados num momento em que o contexto político brasileiro estava drasticamente polarizado, portanto, a carga social que tínhamos ao ler os livros era significativa e foi fundamental para minha experiência de leitura. Além disso, trabalhamos com o tema da cultura do cancelamento nas aulas de redação, que me possibilitaram ter uma visão mais ampla de como a cultura do ódio, o medo do erro e da busca ferrenha por aceitação são também forças atuantes no distanciamento do objetivo democrático de um diálogo saudável e produtivo. Além disso, entendo ser de extrema importância a busca por resolução dos motivos que ocasionam a polarização. Escrevi um poema, que apresentei em um dos projetos da escola, que faz alusão ao ‘’poema em linha reta’’, do Fernando Pessoa e à cultura do cancelamento. Alguns meses depois, tive a oportunidade de ler a Trilogia e logo surgiu a ligação entre os temas quando percebi que a busca por nunca errar, fortalecida pela cultura moderna, é fundamental no distanciamento do diálogo democrático no Brasil. Esse debate interno se externalizou quando tivemos contato com um texto sobre política nas aulas de sociologia. Conversando com amigos do meu grupo, pude perceber que o próprio ego do ser humano era determinante nos diálogos. Esse mesmo ego também era utilizado pelos representantes políticos para a criação do projeto de polarização, tendo em vista os benefícios eleitorais de ser um herói nacional perante um inimigo digno.”
Luís Felipe da Silva Viegas, estudante
Uma pergunta impertinente: livros de charges servindo como material didático de apoio não provoca a ira de grupos políticos que acusam professores de “doutrinação ideológica”?
As charges procuram expor figuras públicas a situações ridículas ou a mostrar de forma não convencional temas normalmente tratados com maior seriedade, suscitando o riso. Um final inesperado é um fator muito usado em charges para provocar o efeito de comicidade. Trata-se de uma ruptura do discurso constituído. Claro que corria o risco de provocar a ira de grupos políticos, ainda mais no atual contexto. No entanto, a ideia era mostrar que todos os políticos podem e devem ser questionados, isso a Trilogia mostrou com maestria. Essa observação também foi referenciada pelos alunos. Ainda no relato de Luis Felipe:
“Quando estava lendo a Trilogia, um dos pontos tocados em conversas com meus colegas foi a armadilha retórica empregada por muitos políticos que busca tornar a sala de aula um ambiente instável e transfigurar a imagem do professor para a de um doutrinador. Infelizmente essa ‘armadilha’ tem surtido efeito visível, pois notamos professores que fogem de temas espinhosos, ainda que necessários ao exercício da plena cidadania.”
Luís Felipe da Silva Viegas, estudante
O fazer pedagógico necessita de coragem. Tratar assuntos que podem causar discussões ou provocar a reflexão é um tabu. Muitos preferem não tocar no assunto, ou tratá-los de maneira superficial, “varrer para debaixo do tapete”, isso acontece muito no mundo literário. Prefiro provocar, instigar e refletir, sempre de forma consciente e responsável, para não gerar aversão dos meus alunos e colegas docentes. Agindo assim, acho que as aulas se tornam mais dialógicas, os alunos são ouvidos e ponho em prática a minha função, que é mediar, promover as discussões democráticas. Todos falam e todos são ouvidos. Deixando bem claro os objetivos: reflexão, análise de discursos e contextos.
Cite um tema de cada livro (corruPTos, Trágico e Cômico e DISTOP!A) que você considera bons tópicos de discussão com os jovens.
Em corruPTos destaco o jogo político, as retóricas políticas, as relações entre ética e a política. São algumas temáticas. É uma ótima ferramenta para trabalhar em conjunto com O Príncipe, clássico de Maquiavel, e refletir sobre as relações do poder: como chegar ao poder e como não perdê-lo.
Trágico e Cômico é bem contextualizado. Trata temas que meus alunos não vivenciaram (ou não lembram porque eram muito novos), então os coloca em uma espécie de linha do tempo para explicar fatos em evidência naquela época [10 anos atrás]. Alguns temas, como o surgimento de partidos, o crescimento da polarização política e as analogias feitas – como na charge da Teoria da Evolução de Darwin com os políticos e reality show (imagem abaixo) – o tornam um ótimo livro para trabalhar a intertextualidade.
Em DISTOP!A as temáticas são mais significativas para os alunos, pois eles estão vivenciando os fatos retratados nas charges. A polarização política, cultura do cancelamento, o desafio de manter o diálogo democrático nas redes sociais, fake news, algoritmos, cultura do ódio, ainda dá para abordar temas factuais como fascismo e democracia. E, de novo, a intertextualidade encontrada nas referências usadas são magnificas: clássicos como A Revolução dos Bichos e 1984, de George Orwell, são um prato feito para incentivar a leitura. A análise de filmes e outros gêneros, também podem ser trabalhados em sala de aula a partir das referências feitas.
Você aborda temas que preocupam os jovens de hoje, como algoritmos, polarização e cultura do cancelamento. Como esses temas mais atuais se relacionam com os conteúdos regulares do ensino?
Sou meio inquieta em relação a educação. Na minha disciplina (Língua Portuguesa) não é tarefa fácil fazer as aulas ficarem interessantes. Então quando vejo um objeto de conhecimento, me pergunto como esse conteúdo pode ser interessante, ou como fazer meus alunos alinharem esse conteúdo ao interesse deles. Então para contextualizar os objetos de conhecimento busco trazer gêneros atuais e diversificados, sempre usando temáticas atuais. São temas vivenciadas por eles e, na maioria das vezes, os próprios alunos nunca pararam para refletir sobre eles. Dentro dessa visão é que o gênero textual da charge, publicada em jornais, revistas e livros didáticos, se mostra material adequado para a prática. Lembrando que a charge é um texto atraente para nossos jovens pelo uso associativo de texto verbal/não-verbal e do humor, possibilitando o desenvolvimento de ações que tragam o prazer de pensar, interrogar, sonhar e ler.
A cena de estupro retratada no último capítulo de DISTOP!A teve um forte impacto, especialmente sobre as meninas. O que você observou disso e como foi o debate em torno do assunto?
Sim, o impacto entre as meninas foi mais forte, por fazer uma alusão a uma violência sexual. O estupro foi retratado pela perspectiva da vítima e isso foi mais impactante. Os alunos compreenderam que a democracia sofreu uma brutal violência nos últimos anos. O pedido de socorro e as imagens turvas e desfocadas provocaram os sentidos. Algumas meninas conseguiram perceber como os algozes culpavam a vítima: “vou dar a ela a lição que merece”, “afinal, se usa roupa curta é porque tá pedindo”. Isso infelizmente acontece e a associação foi automática.
No primeiro trimestre fiz uma atividade que consistia em produzir uma campanha informativa, em que os alunos escolhiam o tema de acordo com o interesse e significância. A maioria das meninas escolheram temas como abuso sexual, relacionamentos abusivos, rede de apoio para vítimas de violência sexual, etc. Então, por se tratar de uma temática altamente significativa para as meninas, o impacto foi maior nelas. Uma aluna mandou o seguinte relato:
“Ver aqueles velhos lambendo, arfando e rindo me deu um asco. O perigo de perdemos a democracia é como um estupro. Sobrevivemos, mas com sequelas. Mas nem por isso são culpadas. Nem as mulheres, nem a democracia.”
No Brasil, o Ensino Médio ainda possui altos índices de evasão escolar. Na sua opinião, por que isso acontece? O que se pode fazer para manter os estudantes na escola e fazê-los terminar esta etapa tão importante do ensino?
O Ensino Médio enfrenta taxas de acesso e de conclusão abaixo dos patamares adequados. Dados recentes evidenciam isso. Esse ciclo da Educação Básica também tem problemas históricos relacionados com o engajamento dos jovens. A falta de motivação é uma das principais causas da evasão. Somada a isso, ainda têm fatores sociais e econômicos que fazem com que nossos jovens não concluam o Ensino Médio. Depois da pandemia isso ficou ainda mais evidente.
O Novo Ensino Médio, na minha opinião, agravou ainda mais o problema. Como fazer um aluno ficar na escola em tempo integral, se ele precisa trabalhar em um dos turnos para complementar a renda familiar? Como colocar alunos em itinerários formativos sem ouvi-los, sem perguntar se eles se identificam com isso? Então o que já não era atrativo se tornou ainda mais desafiador. Acho que seria um começo dar mais significado e fazerem com que eles percebam que são os principais agentes do processo de aprendizagem.
Esses currículos engessados e poucos significativos só agravam. Subestimamos nossos alunos, na maioria das vezes. Eu busco sempre desafiar, inquietar. Deixar que eles saiam das bolhas. Não é tarefa fácil, falta estrutura, falta motivação por parte do corpo docente também. Professores com cargas horárias exaustivas, sem formação e valorização… ainda somos estigmatizados e, por vezes, hostilizados.
Mas em relação à educação sou meio utópica. Sigo acreditando no poder da educação, na transformação que só ela pode causar. Conscientizar os nossos estudantes das suas próprias realidades e mostrar para eles que são capazes de modificá-las é essencial. Mas a necessidade é mais urgente, então políticas públicas para ajudar os alunos a permanecerem na escola também é fundamental.
Você relatou que em todos os momentos de atividades e debates com os livros não houve nenhuma briga. Nem mesmo uma discussão mais acirrada. Como isso é possível no Brasil de 2023? O que podemos aprender com os jovens?
Sabe que isso foi uma surpresa para mim também? Esperava que as discussões seriam mais acirradas. No entanto, foram como deveriam ser: democráticas, participativas e muito significativas. Talvez o mérito seja da percepção da importância do tema. Talvez pelo fato de eles já estarem saturados dessas brigas, principalmente no âmbito virtual. Ou pelo fato de ter trazido a temática com leveza, humor e criticidade. Ainda sobre o relato do aluno Luís Felipe, observei como eles conseguiram se engajar:
[…] Percebi a necessidade de se falar sobre política em sala de aula. A professora Vanuza utilizou a Trilogia de Charges de forma elegante e despretensiosa. Fez isso de forma natural, utilizando o humor das charges como atrativo para que ríssemos do teatro de palhaçaria presente no jogo de poder da política. Depois de ler os livros, e sendo um grande apreciador de filosofia, posso concluir que a Trilogia teve um papel fundamental na concretização da democracia no Brasil. Durante a leitura dos primeiros livros senti uma crítica às minhas próprias verdades – sentimento que pude ver expresso no olhar de todos os alunos que leram os livros.
Luís Felipe da Silva Viegas, estudante
Houve também uma encenação de um debate eleitoral, em que os alunos imitaram os políticos mais destacados do cenário nacional. E, pelos vídeos que vi, eles o fizeram com muito humor e ironia. Descreva um pouco como foi essa atividade e como os alunos encararam este desafio?
Essa atividade não foi minha. Enquanto estava trabalhando com eles nas aulas de Redação, eles estavam se preparando para os “Projetos Estruturantes” de um festival artístico, chamado FESTE. Então a química dos alunos com a Trilogia foi tão perfeita que eles me perguntaram se poderiam usá-la para produzir uma peça teatral, em que eles ironizavam os debates políticos. Claro que consenti. Um grupo de alunos de outras turmas do 3º ano se juntou para produzir o teatro. Eles aproveitaram algumas falas e imagens do DISTOP!A. Fiz uma breve revisão no texto, nos diálogos, mas deixei a criatividade deles fluir. A atividade seria para as disciplinas da área de humanas, mas o fato de terem me procurado e terem usado uma temática que propus nas minhas aulas foi muito gratificante. Mostrou que na educação não há objetos de conhecimentos isolados, e mostrou que a transdisciplinaridade é possível. O grupo ganhou na categoria “Teatro” no FESTE e agora vai disputar a etapa regional. Então só posso dizer que a experiência não poderia ter sido melhor e que eles ainda usarão muito a Trilogia.
“O livro se encaixou direitinho no que estávamos pensando, principalmente os capítulos sobre as redes sociais e sobre o bolsonarismo.”
Maria Eduarda, aluna do grupo de teatro
Para fechar: você observou alguma mudança de atitude deles em relação à política?
Sim. A utilização de charges em sala de aula pode, sim, mudar a visão dos estudantes sobre política de várias maneiras. Charges são ilustrações satíricas ou humorísticas que muitas vezes retratam questões sociais, políticas e culturais de forma crítica. E, parece, foi o que aconteceu. Meus alunos perceberam a importância da reflexão sobre a política e de como ela pode mudar suas realidades.
A Trilogia ajudou a mostrar aos alunos que todos os políticos e situações políticas podem e devem ser criticadas e analisadas. Eles conseguiram perceber que essa análise crítica está bem longe da polarização política dos últimos anos, e isso ajudou a promover o diálogo, que era o meu objetivo desde o início.