O tempo e o jornalismo desde o fim do Jornal da Tarde

Capa, página 2 e página especial da última edição do jornal

Hoje faz exatos 11 anos que o Jornal da Tarde publicava a sua última edição. Aquele 31 de outubro de 2012 foi um dia de muita comoção em toda a imprensa brasileira. De janeiro de 1966 até seus dias finais, o JT, como ficou conhecido, deixou uma marca, trouxe inovações em design e produziu capas ousadas (algumas delas históricas). Tive o privilégio de fazer parte dos últimos cinco anos dessa história, assinando a charge da página 2 e contribuindo com tirinhas, ilustrações e matérias.

Um dia antes, no dia 30/10, data do último fechamento, aconteceu algo que jamais esquecerei. No fim da tarde, todos nós, da redação e da arte, fomos chamados no “mesão” dos editores para uma foto da equipe completa. Feita a foto, toda a redação do Estadão, que ficava ali em frente, se levantou e nos aplaudiu de pé por sete longos e emocionantes minutos. Lágrimas e abraços se seguiram. Era realmente o fim de uma era.

O último editorial do jornal não poderia ter dito de melhor forma: “O Jornal da Tarde (JT) sai de cena hoje para entrar para a história do jornalismo brasileiro na muito rarefeita categoria das utopias realizadas”.

Naqueles dias, questionou-se muito a não-continuidade do JT apenas nos meios digitais, uma vez que era uma marca forte e consolidada no mercado. Nenhuma explicação convincente foi dada, mas sabia-se da disputa dentro da família Mesquita, e o jornal era um dos motivos das desavenças. A história está bem detalhada no livro Jornal da Tarde: Uma ousadia que reinventou a imprensa brasileira, de Ferdinando Casagrande.

Nos anos seguintes, ainda colaborei com a ESPN e até com a Placar, por um breve período, mas o fato é que a minha transição de carreira teve início ali, 11 anos atrás. E não foi por escolha minha. Foi apenas uma realidade que se impôs, em face à transição pela qual o próprio jornalismo estava passando. Aquele momento representava o crepúsculo das redes sociais como canal principal por onde o público se informava. A era dos smartphones e da hiperconectividade tinha, enfim, chegado.

Aquela ideia dos jornais como “guardiões da democracia” (ou o “quarto poder”, se preferirem), já vinha ruindo, até que, a partir dali, caiu completamente. Muitos chegaram a comemorar “o fim do predomínio das oligarquias dos meios de comunicação” – uns por questão estratégica pois, já naquele tempo, trabalhavam em prol da polarização política e viam a imprensa como inimiga. E outros porque, ingênuos, não perceberam que novos oligarcas, os das “big techs”, viriam para assumir o controle.

Fazendo um balanço desses 11 anos, vejo que aqueles sonhos e desejos de “democratização da informação” não só não se realizaram, como criaram um abalo civilizacional. Saímos de uma situação em que a informação não era acessível para todos, para uma situação em que a desinformação foi enfiada goela abaixo de todos.

Uma reflexão que fiz recentemente é que o ser humano simplesmente não pode ter todas as suas vontades realizadas. Não só porque ele fica preguiçoso e mimado, mas porque também se torna violento e autoritário, quando contrariado. Os fatos e a história não podem ser adaptáveis “ao gosto do cliente”, ajustados em “narrativas alternativas”. Fatos não estão a favor ou contra nada, nem ninguém. São apenas fatos, que podem ser incômodos mas, na maioria das vezes, são apenas chatos e não “engajam” o público.

A partir do momento em que permitimos que os fatos fossem revistos, manipulados ou até deformados para “criar engajamento”, caíram as bases de um denominador mínimo comum, de onde deveriam partir os debates da sociedade. Não é coincidência que, a partir desse rompimento factual/histórico, passamos a permitir falsos debates sobre terra plana e sobre a eficácia das vacinas.

Não que os jornais fossem imaculados em suas atribuições. Pelo contrário. Sempre vi essa pretensa isenção como um problema, pois não existe isenção absoluta. Existem linhas editoriais e os jornais deveriam ter sido mais transparentes quanto a isso. Porém, se alguma mentira fosse publicada, ou algum fato reportado não tivesse recebido a devida apuração, o veículo era responsabilizado por isso e sua credibilidade era manchada. Lembro aqui do caso da “Escola Base”, até hoje uma ferida aberta do jornalismo brasileiro, quase 30 anos depois (ganhou até documentário na globoplay recentemente).

E aqui chegamos a um ponto-chave do jornalismo de ontem e de hoje: a apuração. Se no tempo das rotativas já havia problemas com apuração, imagina agora, em que tudo precisa ser “em tempo real”. Este é o meio por onde se revela o que considero o maior problema das sociedades hoje: o extremo imediatismo que a vida digital nos impõe.

Não sei se vocês perceberam, mas se tudo é “urgente”, “para ontem” e afins, então nada acaba sendo, pois não restam tarefas secundárias, que podem aguardar um prazo maior. O que me surpreende é a surpresa das pessoas com essa epidemia global de burnout e problemas de saúde ligados a stress e ansiedade. Mostra como até a nossa capacidade de medir causa e consequência foi afetada.

Sobre esse tema, volto ao editorial da última edição do JT, que já trazia questionamentos incômodos e premonições nada auspiciosas sobre o futuro que nos aguardava:

“Desenhado para chegar às bancas no início da tarde, o JT pôde, na primeira metade de sua vida, dar-se ao luxo de funcionar na velocidade das ideias e concentrar-se com o necessário vagar no tratamento dos fatos, na avaliação do seu significado e na sua apresentação em imagens e palavras nunca antes tão cuidadosa e competentemente trabalhadas na história da imprensa brasileira.

[…]

No momento em que não só o jornalismo, ferramenta essencial da democracia, mas o pensamento escrito como um todo se debatem novamente numa crise que é, essencialmente, uma crise universal de desajuste de velocidades, vale a pena nos determos mais uma vez nesse aspecto que, para o bem e para o mal (quando a vantagem do tempo de processamento lhe foi suprimida), definiu a história e a trajetória do Jornal da Tarde.

[…]

A submissão acrítica ao fascínio da velocidade sem rumo devolve a humanidade a uma crescente incapacidade de pensar e vai reduzindo a vida a uma sucessão de reações automatizadas de sobrevivência onde somos nós que, em bando, servimos às máquinas e não elas que nos acrescentam à individualidade, à segurança e ao conforto material ou espiritual.

Superar a barbárie e dar a cada homem as rédeas do seu próprio destino é o objetivo da democracia.”

editorial, Jornal da Tarde, 31/10/2012

Que tal essa frase final?… Pois é.

E sobre a questão da “submissão acrítica ao fascínio da velocidade sem rumo”, Nelson Rodrigues tinha uma frase que ia na direção oposta: “Acho a velocidade um prazer de cretinos. Ainda conservo o deleite dos bondes que não chegam nunca.”

Bem, se me perguntarem qual deveria ser a velocidade adequada, eu não entraria nem no trem-bala das mídias digitais, e nem no bonde do Nelson. Escolheria algo no meio do caminho: sabendo respeitar o tempo das coisas e, principalmente, tendo a sabedoria de entender o que é urgente e o que não é.

Talvez a resposta esteja justamente nestes cinco anos em que dei minha contribuição nesse capítulo final do JT. Uma época anterior à massificação dos smartphones, quando as pessoas não estavam on-line 24 horas por dia, 7 dias por semana, mendigando curtidas e engajamentos.

Coincidência ou não, uma época em que, pessoalmente, além de estar no lugar certo e na hora certa, eu sentia que a vida estava sendo vivida no tempo certo.