Quando falamos em criatividade, logo se imagina esse mundo segregado entre criativos e não-criativos. Foi isso que nos foi ensinado quando criança. Criatividade é um dom divino, algo inato do ser humano. Ou tem ou não tem, e ponto final. Hoje, em plena era da educação transversal e habilidades socioemocionais, chegou o momento de derrubar esse mito.
Diferente do que muita gente pensa, a criatividade deve ser um exercício diário, independente da área de atuação da pessoa. Claro que existem níveis de criatividade, que variam de pessoa para pessoa, mas ela é vital para os mais diversos aspectos da vida. Já existem estudos comprovando que crianças que exercitam a criatividade se tornam adultos mais resilientes.
Mas de onde vem a criatividade e de que forma podemos estimulá-la? Um vídeo que trata do assunto de uma forma cativante é o TED Talk do ator Ethan Hawke. A premissa já traz uma constatação importante: muitas pessoas têm dificuldade em dar a si mesmas a permissão para serem criativas.
São vários os fatores que bloqueiam a criatividade. Seja por excesso de autocrítica, seja por medo de cancelamento, seja por falta de tempo para criar. Em casos extremos, falta tempo até para o lazer. São muitas as dificuldades que a vida moderna nos impõe.
Quem se aventura a publicar alguma ideia nesse mundo dominado por redes sociais e algoritmos, pode ficar frustrado com a falta de repercussão. Diante do desinteresse geral, muitos acabam largando suas ideias na gaveta. Hawke trouxe uma compreensão melhor sobre o tema:
“Muitos de nós queremos oferecer ao mundo algo de qualidade, algo que o mundo vai considerar bom ou importante. É aí que está o inimigo, pois não depende de nós dizer se o que fazemos é bom ou não. E, se a História nos ensinou algo, é que o mundo é um crítico nada confiável.”
Ethan Hawke
Mesmo que a nossa arte não esteja “viralizando”, não significa que ela deixa de existir. A arte sempre está viva dentro de nós e, antes de tudo, ela deve existir para nossa própria fruição, para que possamos apreciar o processo criativo e, quem sabe, aprender algo novo. A única “curtida” que a nossa arte precisa receber é a nossa própria.
Hawke prossegue dizendo que, quando estamos emotivos – seja amando ou sofrendo –, é quando arte deixa de ser um luxo para se tornar algo que nos dá sustância. É quase como um processo terapêutico, uma forma de entender nossos sentimentos.
Não é incomum ouvirmos alguém dizer que um livro, um filme ou um disco mudou (ou até salvou) sua vida. Pode parecer exagerado para quem não tem muita sensibilidade artística e enxerga tudo como entretenimento descartável. É aí que reencontramos aquele mundo segregado, mencionado anteriormente: o de achar que a arte deve ser exclusividade de artistas ou de pessoas naturalmente criativas.
Por exemplo: engenheiros são vistos como pessoas numéricas, metódicas e pragmáticas, mas mesmo eles precisam de criatividade para solucionar problemas em seu trabalho. É claro que eles dificilmente usarão sua criatividade para pintar um quadro ou escrever poemas, mas suas soluções podem se inspirar nas mais variadas referências, fazendo-os enxergar o mundo por um prisma diferente.
E já que falamos em referências, convém lembrar que elas podem vir de lugares aleatórios, muitas vezes até improváveis. Uma ideia não precisa nascer necessariamente a partir de uma obra de arte. Pode vir numa viagem, pode aparecer numa conversa com alguém. Nada disso tem hora para chegar. Pode aparecer quando estamos sentados tentando criar algo, mas também pode vir quando estamos empenhados em outras atividades… ou em atividade nenhuma.
Assim chegamos ao conceito de “ócio criativo”, do sociólogo italiano Domenico De Masi. Segundo ele, o ócio criativo vem da união de trabalho, estudo e lazer. Unindo esses três elementos, evita-se a mecanização do trabalho, tornando a pessoa mais criativa e também mais produtiva. De Masi acreditava que a tecnologia é uma grande aliada do ócio criativo, mas deixou seus alertas:
“As muitas pesquisas realizadas em todo o mundo mostram que, com o trabalho à distância, a produtividade aumenta de 15% a 20%. Isso significa que o teletrabalhador pode fazer em sete horas o que antes, no escritório, levava oito horas. Aqueles que, por teletrabalho, estenderam seu dia de trabalho em vez de encurtá-lo, são neuróticos que não podem viver sem trabalhar. Precisam de ajuda para se desintoxicar. O teletrabalho permite combinar trabalho, estudo e lazer: ou seja, permite o ócio criativo.”
Domenico De Masi
Para além do ócio criativo, que deve ser um tempo que a pessoa reserva para si, há também a intrigante questão: porque tantas ideias aparecem em momentos tão banais?
Em outro TED Talk, a jornalista Manoush Zomorodi investigou a questão. Conversando com diversos neurocientistas, ela descobriu que, quando estamos nos dedicando a tarefas entediantes, ligamos uma rede neural em nosso cérebro, chamada “modo padrão”, que aqui conhecemos como “piloto automático”. É nestas horas banais, em que estamos escovando os dentes ou tomando banho, que nosso cérebro se desliga das obrigações e começa a voar, conectando ideias.
Portanto, se o ócio criativo não tiver um tempo reservado em nossa agenda, os únicos momentos em que deixamos o ar e as ideias entrarem em nosso cérebro serão nestes breves e tediosos momentos, em que estamos no “piloto automático”. Para uma pessoa que quer exercitar a criatividade mais regularmente, é pouco.
Claro que a vida moderna é corrida e, às vezes, 24 horas parece pouco em um dia, mas em algum momento precisamos nos desligar desse modo “tarefeiro”, de forma que sobre espaço para ideias e reflexões mais profundas. Segundo Zomorodi, “o tédio pode nos levar ao brilhantismo”.
Caso você tenha a felicidade de encontrar um tempo para o exercício criativo, convém lembrar que, quando uma ideia vier, deve-se anotá-la imediatamente. Se a História nos ensinou algo mais, é que, da mesma forma que a ideias vêm, elas também vão embora.
Boas criações!