O Roda Viva sempre foi um farol para a opinião pública. Através dos tempos, foi por ela que o brasileiro ficou conhecendo seus principais personagens. O cenário de arena de debates já sugere que ali ocorre o confronto de ideias e visões sobre o país. Porém, no último dia 4 de março, o programa sofreu uma enorme perda. O grande Paulo Caruso nos deixou.
Desde então, a produção do programa criou uma solução bonita e honrosa: convidar cartunistas para se revezarem no posto deixado por Caruso, como forma de homenageá-lo. Vários nomes de peso estiveram lá desde que esse revezamento começou. Eu não imaginava ser convidado tão cedo. Até que, certo dia, recebi uma mensagem da produção.
O convite veio seis dias antes da data marcada: 29 de maio de 2023. Nem tive muito tempo para pensar ou me preparar. Encarei o desafio como uma grande oportunidade para retornar a duas atividades que trabalhei muito no passado: a charge política e o desenho ao vivo.
O entrevistado, Deltan Dallagnol, é daquelas figuras polêmicas que o público ama ou odeia (ou ama e odeia, vai saber). Uma rápida passada pelas suas redes sociais já revela como ele é um dos grandes vetores da polarização política. Retratá-lo só tornaria o desafio ainda mais interessante. A repercussão seria enorme.
Desenhar para a TV é muito diferente de desenhar para jornal ou para a internet. Exige fluidez e a mão precisa estar afiada, pois um traço em falso pode custar a arte toda. Comprei alguns materiais e tirei o domingo para experimentar técnicas e esboçar algumas ideias. Como eu precisava de um traço mais potente e marcado, achei que seria interessante trabalhar em escala de tons de cinza e sépia. Testei, gostei do resultado e aos poucos fui chegando num formato ideal.
Eu já tinha recebido os nomes que formariam a bancada, então criei uma “charge de apresentação” do programa, sem perder a piada com o fatídico Power Point do Dallagnol. Preparei também uma arte de homenagem ao Paulo Caruso, da qual falarei mais depois.
Além dessas 2 artes, que já levei prontas, deixei 6 ideias esboçadas para trabalhar durante o programa, além de caricaturas da Vera Magalhães, do Thybor Malusá (editor-chefe) e da Leticia Cancella (produtora). Doei também uma Trilogia de Charges para o acervo da TV Cultura.
Após um coquetel no restaurante executivo da emissora – onde pude conhecer a Vera e os membros da bancada –, era hora de ir para o estúdio. Você deve estar se perguntando se eu não estava nervoso. Bom, na verdade, fiquei um pouco ansioso só horas antes, especialmente quando eu pensava no lugar de quem eu iria sentar.
Porém, na hora de literalmente “entrar na Roda”, eu estava muito tranquilo e seguro do que eu precisava fazer. E estava tranquilo também em relação a não ceder a pressões das torcidas organizadas. Mestre Millôr Fernandes já dizia que o humor é a quintessência da seriedade e a minha concepção deste trabalho é cristalina: analisar criticamente sem aderir a agendas ativistas e não poupar qualquer personagem que seja. O Humor (com H maiúsculo) serve melhor ao propósito da crítica quando ressalta o aspecto burlesco e caricaturável do personagem.
Claro que a militância a favor do Deltan queria vê-lo retratado como grande herói nacional, caçador de corruptos e evangelizador da moral e dos bons costumes. Já a militância contrária queria que eu o assassinasse a machadadas e jogasse seus restos mortais no esgoto mais fétido. Nenhum dos dois lados teve a sua “ordem” acatada.
Na apresentação do programa, deixei a charge do Power Point posicionada para as câmeras captarem e, feito isso, comecei o trabalho. Meu plano era de completar pelo menos as 6 ideias que eu tinha esboçado, temperando com algumas falas deles.
O debate foi quente, como deve ser, e explorei alguns dos temas inevitáveis, mas na hora não pude observar a linguagem corporal das pessoas. Precisei interpretá-los com os ouvidos. Tudo acontece muito rápido. Não há tempo para análises mais detidas e, logo no primeiro desenho, percebi que eu teria de abrir mão de certos acabamentos que costumo fazer em meus trabalhos.
O que parece ter surpreendido a todos (bancada e público) foi a velocidade e veemência com que o Dallagnol se expressou. A estratégia dele era não deixar nenhuma pausa em sua fala, a fim de não abrir brechas para a bancada rebatê-lo. Chamou a atenção também seu tom messiânico, como se estivesse em missão divina na caça aos corruptos (mas só os de esquerda, claro).
Durante os intervalos, as discussões continuavam e o clima só se descontraia quando alguém citava algum comentário engraçado das redes sociais. Às vezes, Dallagnol lançava uns olhares desconfiados lá para o meu lado da bancada. Num dos últimos intervalos, ele não aguentou e falou “quero ver o que esse cartunista está fazendo. Ele não para de riscar pra lá e pra cá”.
Fim do programa, todos desceram da bancada para a tradicional foto em conjunto. Eu tinha, enfim, cumprido a meta de finalizar as 6 charges. Expus todas na mesa para que o pessoal pudesse ver o resultado. Mais do que isso: deixei que as pessoas “se servissem” delas. É divertido ver a reação do público, ainda mais de forma tão imediata assim. Em meus tempos de Jornal da Tarde, era frustrante não saber qual era a reação do leitor.
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No fim, Dallagnol ficou com as charges do Benedito Gonçalves e do Xandão. A do Power Point ficou com a Camila Mattoso. Conrado Corsalette e Flavio VM Costa ficaram com suas respectivas e as 2 restantes (a do cartaz e a do Lula/Bolsonaro) foram para o arquivo da TV Cultura…
A charge/homenagem ao Paulo Caruso? Essa ficou comigo. Era a única que estava “embargada”, pois será a minha recordação ilustrada desta grande noite, que guardarei para sempre na memória.
Galeria de fotos do programa
© Nadja Kouchi / Acervo TV Cultura
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Veja o programa completo
Atualização
Este texto foi republicado no site Digestivo Cultural, a pedido de seu editor, Julio Daio Borges que, por sua vez, publicou o seu próprio texto sobre o assunto.