
Da esquerda à extrema direita: 20 anos de charges
No final de 2017, após 15 anos trabalhando como chargista e jornalista, eu tinha tomado a decisão: era hora de dizer adeus. Para mim, aquilo era, como se diz popularmente, “o fim de uma era”. Àquela altura, eu já tinha entrado de cabeça em novos desafios. Cheguei a ficar três anos sem desenhar, e me surpreendeu o quanto isso não me fez falta. A nova vida caminhava bem, portanto não havia motivo e nem tempo para saudosismos. Restou o orgulho de um trabalho bem-feito, ainda que, a meu ver, incompleto (já volto a esse ponto).
Foi durante esse mesmo período que decidi eliminar da minha vida dois hábitos que envenenavam o meu dia a dia e destruíam a minha saúde mental: o Facebook e o Twitter. Eu já tinha enxergado as redes sociais como o palco da polarização política que grassava pelo país. Enxergava também que o fenômeno do bolsonarismo estava em escalada, e que o futuro nos remeteria a um passado sombrio. Passei a olhar a política apenas como observador externo e silencioso. Sem blogs, sem redes sociais, sem interações. Meus debates sobre política se restringiram a poucos círculos.
Meus dois livros — corruPTos?… mas quem não é?, lançado em 2006, e Trágico e Cômico: os protestos em charges, de 2014 — foram produtos de minhas incursões pelo mundo da charge e revelavam bem, cada um a seu tempo, o momento político que o país atravessava. O primeiro foi uma aventura solitária, que parecia não fazer muito sentido na época, mas que me levou a voos mais altos, culminando com o meu trabalho como chargista e ilustrador do Jornal da Tarde (e eventualmente colaborador cultural do JT e do Estadão). E o segundo livro foi resultado direto dos cinco anos em que trabalhei na redação, um período de muito aprendizado, no qual pude me dedicar exclusivamente à charge e à escrita. Trágico e Cômico era o nome do blog que eu mantinha no portal do JT/Estadão e o livro era a consolidação desse trabalho que me trouxe enorme satisfação e prazer.

Ambas as publicações traziam uma temática central, calcadas em um acontecimento de grande impacto político. Um “gancho”, como se diz no jargão jornalístico. O corruPTos nasceu da desilusão nacional com o PT, diante do escândalo do mensalão, e o Trágico e Cômico seguiu a trilha aberta pelos protestos de junho de 2013, trazendo as pautas difusas da rua.
De volta a 2017, como eu dizia, a partir dali a vida seguiria o seu rumo. Até que veio a pandemia, com todos os seus horrores amplificados pelo negacionismo oficial. Se um governo de Jair Bolsonaro, por si só, já renderia um livro de charges, imagine um governo Bolsonaro em meio a uma pandemia. Ali por meados de 2020, comecei a considerar a ideia de produzir um terceiro livro, ideia que foi ganhando força ao longo do segundo semestre. A cada aglomeração promovida pelo presidente, a cada declaração contra as vacinas, a cada notícia falsa que chegava a mim via WhatsApp, se materializava a noção de que este terceiro livro não era apenas bem-vindo, mas necessário.
E assim, pela terceira vez, eu tinha um grande gancho para um novo livro — e entendi que ele seria o terceiro volume de uma trilogia de charges, pois fechava o arco narrativo que se iniciara vinte anos atrás com um governo de esquerda, passava pelo derretimento do sistema político dez anos depois e chegava num governo de extrema direita que tem como principal objetivo transformar o Brasil numa ditadura bananeira.

A diferença deste terceiro livro em relação aos outros é o propósito. Enquanto que das outras vezes havia a ambição de levar meu nome a todos os lugares possíveis, para me consolidar como autor; dessa vez o fiz por vocação e convicção, por acreditar que estávamos diante de uma situação-limite. Todos os governos têm seus debates, mas as atitudes de Bolsonaro fizeram com que seu governo não fosse digno de qualquer debate. O processo de criação deste livro foi a forma com a qual eu somatizei as dores do pior e mais nefasto governo da história republicana brasileira.
Quando abandonei a vida de chargista e escrevinhador, foi uma decisão que ocorreu mais por força da circunstância do que uma escolha refletida. Não pude evitar o sentimento de incompletude e a sensação de não ter conseguido fechar esse ciclo no meu tempo e nos meus termos. Dessa forma, este livro também serviu para que eu tivesse a palavra final sobre qual deve ser o momento para encerrar as atividades. E, se DISTOP!A for o meu último livro no mundo das charges, pode ter certeza de que estarei em paz com isso, pois considero o arco fechado, e minha contribuição completa.
Agradeço de coração a todos que me acompanharam nessa jornada.
Muito obrigado!

- texto escrito em janeiro de 2022 e publicado na introdução do livro